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ensaio:

Empatia, Medicina, Corpo (a partir do livro Anda, Diana de Diana Niepce)


publicado no jornal Coreia (#6) em 2022



Isto não é uma recensão crítica. Nem uma análise ou uma síntese. Isto é a força de Anda, Diana e o que a sua leitura em mim suscita. Muito me surpreenderia que, uma vez lido este testemunho, pudesse restar em alguém, de todas as coisas possíveis, indiferença. Ou talvez isto até possa acontecer e haja, bem dentro do livro, algo que nos avisa para isso mesmo. A mim, depois de lê-lo, não vejo outro caminho senão pensar e agir nesse espaço que a Diana abre de forma tão desabrida.

EMPATIA

Em Anda, Diana há muita coisa. Há a experiência de um corpo que, numa cambalhota, se desliga, levita e muda. Há o confronto abrupto entre duas Dianas, pondo em causa de forma violenta, repentina e absurda a utopia do corpo normalizado. Há um intruso e a concretude de se viver a alteridade dentro do próprio corpo. Há o amor e a sexualidade. Há a conciliação de uma ferida com um mundo - ambos gerados da quebra, do rasgo e da ruptura. E há um questionamento fundo e impiedoso do que é doença, saúde e medicina.
Há muita coisa em Anda, Diana. Mas há uma que se destaca: Anda, Diana é também uma avassaladora e inquietante mostra da falta de empatia que grassa à sua volta.


Começa logo nas primeiras páginas. É o “Dia 1” deste diário. Diana, 27 anos, bailarina, cai de um trapézio, “a cervical bate no chão” e há “o barulho de ossos a partir”. Numa questão de segundos, não se mexe para baixo do pescoço. Chega uma enfermeira e logo a seguir mais um. Entre eles, comentam: “’Ela está consciente?’ ‘Está e não se cala’”. Daqui passará para os cuidados intensivos, onde não é só suporte que a espera, mas também o terror (“Se não te acalmas, amarro-te”). O diagnóstico: lesão medular. E a saga assim continua. Com mais profissionais de saúde. Com a família, os amigos e os amantes. No meio artístico, onde há caras familiares que se viram (constrangidas?) e episódios absurdos de inacessibilidade. Continua, enfim, no mundo - “fora do Centro de Reabilitação”, “fora dos muros”, fora de Diana - um mundo que, a partir de então, não a contempla e a invi(si/a)biliza.

Mas não é fácil a empatia, que se reconheça e experiencie uma experiência de outrem. Ao mesmo tempo, talvez não seja tão difícil. Ao ler Anda, Diana penso haver uma relação entre a empatia (ou a falta dela), a medicina (na sua prática e pensamento ocidentais) e o corpo (não como construto, mas na sua materialidade, posição e movimento).

MEDICINA

O pensamento e a cultura ocidentais são orientadas para e pela ordem, para e pelo que é certo. Interessa o que funciona, o que está de acordo. E tudo orbita certas dicotomias: há o bem e o mal, o certo e o errado. Há, de um lado: o funcional, o útil e a verdade. E do outro: a anomalia, o improfícuo e a mentira. Neste paradigma, o interstício é o pavor, porque nele (esse fora, esse entre) degenera a incerteza e a sombra, habita a diferença e não o mesmo. E assim, o erro e a dissonância são preteridos numa ética que se desfasa do real, que o rejeita e o afasta [1].
Desenvolvendo-se no seio deste paradigma e também para ele contribuindo, a medicina poderia dizer-se como orientada para um fim pré-determinado. É muitas vezes isto: surge um problema, uma disfunção, uma anomalia e o seu papel é corrigi-los. A missão é consertar esta desordem e trazer de novo harmonia. Desta forma, também a medicina pode facilmente repudiar o erro e a discórdia, se procurar cegamente o equilíbrio, a normalidade e a função. Pergunto: onde caberá a empatia nesta prática heróica que se impõe, anulando e rejeitando o que considera desvio? Encadeando tudo com uma luz purificadora, potencialmente violenta nessa tentativa de trazer a paz e a ordem que ela própria supõe?

O mais irónico é que esta medicina, ao contrário do que anseia e alega, contém em si mesma uma grande parte de incerteza. Mas quando encontra o desvio, o irresolúvel ou o desconhecido, - frustrada e ansiosa - tende a evitar, normalizar, ou corrigir de volta o que a desconforta para águas mais certas [2]. Pergunto: que resultado (nocivo?) tem esta rejeição ou revisão do que está para lá da margem? E quão perverso será que seja a própria medicina a definir as fronteiras do que a própria esconjura?

Diana diz-nos, a certa altura: “quando me vejo ao espelho já não vejo um escaravelho, mas também já não vejo uma borboleta. Vejo antes uma escaraleta ou um borbovelho”. Ela está no meio. Entre duas Dianas. Entre dois corpos. Entre uma bela criatura e um bicho feio. Diana posiciona-se, mostrando a farsa por detrás dos pares e das dicotomias e o valor da ambiguidade.

Estaremos mais em paz com o nosso corpo e as nossas experiências se nos assumirmos ambíguos e se nos movimentarmos nas águas fluídas entre extremos? Talvez seja isto estar-se saudável. Para além de disfunção, de alteração bio-fisiológica e de normalidade, saúde pode considerar-se como a experiência transparente de cada um com o seu corpo: o não sentir-se nele estrangeirado, dele alienado, ou tendo-o como objeto de estudo e intervenção. A “vida vivida no silêncio dos órgãos” [3]. Estar com o corpo como estar em casa [4].

CORPO

Num encontro médico não há só um corpo ou uma vida que se entrega aos cuidados de outrem. Há dois corpos que se encontram. Podemos, por isso, perguntar-nos: que corpo tem sido o desta medicina?

A medicina ocidental moderna parece seguir, desde a sua origem, um vetor que é frontal, reto e irruptivo. O corpo doente é encarado de frente, com uma mirada intransigente, autoritária e que não o contempla, mas que o penetra na direção de um (suposto) problema. Depois, é lugar a uma intervenção que, geralmente o irrompe ou o invade e que o leva - numa linha que é reta e rígida - desse suposto erro à sua correção [5]. Assim, seja de dentro-para-fora (como as flebotomias e práticas purgativas [6], frequentes na época pré-moderna, que expurgavam os humores nocivos ou em demasia [7]); seja de fora-para-dentro (pela invasão dos tubos, dos fios, fármacos e dispositivos que vão corrigir o mal que vai dentro); o vetor tem sido o mesmo: frontal, reto e irruptivo.
Voltemos à Diana. “Dia 4. Acordo com os tubos a sufocar-me (…) A enfermeira diz: ‘Não chores’”. O sofrimento pode ser também um erro, a disfunção numa vida que se quer, imperiosa e intransigentemente, feliz. Talvez até seja a sua forma mais abjeta e temerosa. Encaramo-lo, por isso, primeiro com terror. E desse susto, a primeira resposta pode, geralmente, ser esse vector corretivo: expurgar o horror, retirá-lo de dentro do corpo onde reside; ou afastá-lo, no sentido inverso, para longe de nós. “Não chores”.
Chego então aqui ao fulcro: É a falta de empatia que inviabiliza um encontro médico generoso, onde os corpos estivessem juntos e não assimetricamente dispostos num movimento que impõe a norma. Que ignora o ambíguo e o desconhecido. Que irrompe e rouba tanto quanto acerta. Que cura mas não cuida.

BORBOVELHOS ANDAM, ESCARALETAS VOAM

A empatia não é só um processo cognitivo ou individual, nem um processo passivo e distanciado de leitura ou simulação. A empatia faz-se e acontece em conjunto e primeiramente no corpo, sendo um processo de inter-afetividade e ressonância corporal. Nela dá-se uma troca de afetos e é o corpo, primariamente, o lugar onde eles se integram e se tornam experiência [8].

Que movimento a empatia instala no encontro médico? Que corpo é que a empatia  promove? Não poderá ser reto - o vetor dos afetos é um turbilhão de linhas entre os corpos, luzindo para todos os lados. Nem tampouco frontal - o corpo que empatiza é um corpo aberto, disposto à ressonância, é côncavo: um arco ou um vaso. E não será irruptivo, porque a empatia, sendo abertura, acolhe e permite, manipulando menos do que o que oferece de cuidado e de ajuda. Nem frontal, nem reto, nem irruptivo. O corpo do movimento empático é sendo-para-outrem, não só permitindo e amparando o erro e o ambíguo, como definindo-se e transformando-se por ele e com ele. O corpo empático promove, assim, o poder ontológico, ético e político da generosidade [9] - não mais uma virtude dentre outras (no domínio do que se delibera), nem fruto de uma lógica individual de propriedade e dádiva, mas primeiro essa abertura: uma disposição que é excesso, entrega e desmesura. Empatia e generosidade: ambas acolhimento e dádiva, como um duplo movimento que também poderíamos chamar doçura [10].
Quão diferente seria, se Diana pudesse afinal contar-nos: A enfermeira diz: ‘Chora Diana’? Ou que não o dissesse de todo, mas apenas mostrasse esse acolhimento, essa disponibilidade, com o corpo. Os olhos encarando os outros. O tronco côncavo, relaxado, ligeiramente curvado para a frente e para dentro. E talvez até um ombro, um braço e uns dedos que se aproximariam num arco (não de frente), curvando-se de baixo e para o lado, pousando muito levemente num outro ombro, ou braço, ou dedos.
Acolher assim o erro, o sofrimento, não será jamais promovê-lo, mas aceitar que existe e não fazer de quem o experiencia uma ente duplamente sofrida. Sofrendo pelo sofrimento e também porque está sofrendo. Sozinha e ilegítima.

Quão diferente seria?



[1] Friedrich Nietzsche, Introdução ao estudo dos diálogos de Platão (WMF Martins Fontes, 2020)

[2] R. Domen “The Ethics of Ambiguity: Rethinking the Role and Importance of Uncertainty in Medical Education and Practice”, Academic Patology 3 (2016)

[3] Concepção de saúde de Havi Carel. Ver Bas de Boer. “Experiencing objectified health: turning the body into an object of attention”, Med Health Care Philos 23 (2020)

[4] Concepção de saúde de Fredrik Svenaeus. Ibid.

[5] Michel Foucault, “O Nascimento da Clínica”

[6] flebotomia ou sangria é a remoção de sangue através de uma punção venosa; práticas purgativas incluem a estimulação da expulsão de vómito, fezes ou suor.

[7] ver R. Sullivan, “Sanguine Practices: A Historical and Historiographic Reconsideration of Heroic Therapy in the Age of Rush”, Bulletin of the History of Medicine 68 (1994)

[8] F. Schmidsberger & H. Löffler-Stastka. “Empathy is proprioceptive: the bodily fundament of empathy - a philosophical contribution to medical education”. BMC Medical Education 18 (2020)

[9] Rosalyn Diprose, Corporeal Generosity (SUNY Press, 2002)

[10] Anne Dufourmantelle, Puissance de la douceur (Payot, 2013)