PUBLICAÇÕES
ensaio:
publicado no jornal Coreia (#3) em 2020
Relações Pandémicas: do nojo e da performatividade
publicado no jornal Coreia (#3) em 2020
Em “PRESTE ATENÇÃO EM TUDO A PARTIR DE AGORA” [1], Daniel Pizamiglio está nu numa sala e recebe o público que entra, distribuindo a cada pessoa um cartão.
Dirigindo-se ao centro do espaço, desenha três setas de carvão circundando cada mamilo e assim se mantém por um tempo. Imóvel. Fazendo-se um corpo diante de corpos e olhando quem o olha de volta. Depois, sem aviso, serve-se de um apito. E, aproximando-se à vez de cada corpo que o observa, sopra – exigindo, de frente, reação. Pizamiglio abre, performa e vive connosco um espaço de encontro, de relação. Como seria hoje vivido esse jogo?

O corpo, na relação com o “outro”, tem, desde cedo, ao seu dispor: a imunidade. Numa pandemia, quando a ameaça (real ou imaginada) é uma presença constante, insidiosa e persistente, é também a imunidade que impera. Hoje, a todo o momento, há uma “linha da frente”, “heróis” e “lutadores”.
á “essenciais” numa “batalha” ou numa “guerra”. Há um “inimigo” que se deve “combater” e “derrotar”. A insistência nesta metáfora – bélica, marcial ou militar –, desde sempre imiscuída na conceptualização da imunidade [2], reflete como ela é hoje um paradigma abrangente e pervasivo, parecendo algo que não podemos dispensar.
Este conceito de imunidade – baseado numa dicotomia do próprio/não-próprio, do dentro/fora, da proteção estanque de um “eu” contra uma ameaça que o devora – associa-se rapidamente a uma outra linguagem que subsidia a repulsa e o nojo, imprimindo no outro um cunho de imagens, juízos e significados que auxiliam a imanência protetora deste sujeito. O outro, hoje, é o “positivo” ou o “sujo”. É o “portador” que deve ser isolado e expulso para longe dos corpos e dos espaços que são “limpos” e “puros”. Ambas estas linguagens – imunitárias – impregnam os espaços da relação e reforçam, mais do que nunca, as ideias de um corpo delimitado, o esforço de uma integridade e a demarcação de um singular – seja ele um corpo, um grupo, um estado-nação ou a metade rica de um globo.
á “essenciais” numa “batalha” ou numa “guerra”. Há um “inimigo” que se deve “combater” e “derrotar”. A insistência nesta metáfora – bélica, marcial ou militar –, desde sempre imiscuída na conceptualização da imunidade [2], reflete como ela é hoje um paradigma abrangente e pervasivo, parecendo algo que não podemos dispensar.
Este conceito de imunidade – baseado numa dicotomia do próprio/não-próprio, do dentro/fora, da proteção estanque de um “eu” contra uma ameaça que o devora – associa-se rapidamente a uma outra linguagem que subsidia a repulsa e o nojo, imprimindo no outro um cunho de imagens, juízos e significados que auxiliam a imanência protetora deste sujeito. O outro, hoje, é o “positivo” ou o “sujo”. É o “portador” que deve ser isolado e expulso para longe dos corpos e dos espaços que são “limpos” e “puros”. Ambas estas linguagens – imunitárias – impregnam os espaços da relação e reforçam, mais do que nunca, as ideias de um corpo delimitado, o esforço de uma integridade e a demarcação de um singular – seja ele um corpo, um grupo, um estado-nação ou a metade rica de um globo.
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Para além da metáfora e da linguagem, ao serviço desta imunidade temos, também, o nojo. O nojo, como emoção, faz parte de um “sistema imune comportamental” que terá evoluído como um mecanismo de evicção da infeção e da doença. Um corpo, perante sinais que perceciona como ameaçadores (alguém contorcendo-se em tosse, a rispidez de um espirro, um corpo macilento, emaciado ou sujo, matérias excrescentes ou em decomposição) sente essa emoção visceral e primária – o nojo – e é, por ele, motivado e afetado a certos movimentos, comportamentos e tomadas de decisão que vão tentar evitar essa ameaça [3]. Mas mais do que uma defesa contra os germes, os maus humores ou o miasma, o nojo, sendo instrumento imunitário, é instrumento de relação. Ele permite ao sujeito criar, reclamar e manter a sua fronteira. Quando um corpo se aproxima, cativa e transgride o “eu”, este imprime nele o nojo pela corporalidade de uma repulsa, por palavras feitas atos e por hábitos e posturas que refutam. O nojo responde, por isso, ao que invade e infringe, ao que põe a descoberto uma vulnerabilidade. [4]
Como reagiram os corpos ao apelo (ou afronta?) de Pizamiglio? A maioria aproximou-se e manipulou-lhe de alguma forma o corpo: os dedos tateando as setas desenhados no peito, uma língua seguindo demoradamente a sua direção, uma lenta torcedura dos mamilos, ou todo o corpo girado no ar e de volta ao chão pousado. Mas e se, pela estridência do apito, ficasse um corpo recolhido? E se a resposta fosse um resguardo, um incómodo? Um encolher dos ombros e da cabeça e um desvio acabrunhado dos olhos? A corporalidade incisiva de um recuo que repele? Seria, certamente, uma resposta. Como as outras. Mas e se fossem todas assim? E hoje, quão generalizada seria esta reação? E se fosse esta a tónica, o padrão?
Poderemos também hoje perceber em nós uma “pequena dança” do nojo, insidiosamente presente no nosso quotidiano? (Quantas vezes, cruzando-nos na rua, não há um olhar que se desvia, uma tensão que entesa os músculos, que prepara o corpo para um salto que o afaste?)Poderemos hoje antever uma nova linguagem dos gestos? Uma pudica moratória dos afetos (asfixiados por máscaras, viseiras, acrílicos – hiperdistanciados)? Ou uma sobreativação de um comportamento imunitário: por uma angústia que exige uma “máxima segurança”, um “risco nulo” que não existe nem se alcança; ou por um brio bem-comportado, a garantia performativa do beneplácito da sociedade, mostrando pelo exagero mais intenção do que necessidade?O nojo é também performatividade. E a resposta imune (que rechaça) pode ser só um “fingimento psíquico”, uma forma de autorreafirmação, uma garantia de que fizemos algo de significativo contra uma intimidação, mas que acaba sendo, tantas vezes, uma falsa tranquilidade, um mero encobrimento e negação dessa ameaça, uma repressão [5].
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No cartão entregue a cada espectador está, de um lado, o título da performance e, do outro, pode ler-se: “EU VOU EMBORA QUANDO ISTO ME ACABAR”. Desta forma, Daniel assevera: é o seu corpo que ele oferece e é ele que é manipulado. Há tanto de entrega como de interpelação, tanto ameaça quanto vulnerabilidade. Naquele espaço, os danos e as dádivas estão em ambos os lados e a relação mostra-se assim: porosa. Os seus limites: esfumados.
A vida, hoje, mais do que nunca, é vivida segundo uma lógica em que a imunidade se coalesce com um panorama ético-político que envolve desde as relações próximas e o quotidiano até às maiores abrangências geopolíticas, económicas e sociais.
Ele sopra, mais uma vez, o apito.
Esta conceção bélica da imunidade reflete um paradigma fechado e linear que a própria ciência já ultrapassou. Ela aceita uma imunidade flexível e porosa, em que a vulnerabilidade e uma interpenetração promíscua dos limites do “eu” e do “outro” fazem não só parte do seu funcionamento orgânico como de várias tecnologias médicas que temos hoje ao nosso dispor [6].
No espaço da relação, esta metáfora parece surgir inadequada perante um “eu” que não é singular, mas uma polissemia de diferenças dentro de “um” [7]. E é uma linguagem que esquece e repele o “outro” e o comum, essa intrínseca e originária necessidade de viver-junto, em comunidade. Também no seio desta lógica, o nojo como sistema, ao depender da perceção, depende não de algo que reside no corpo ou objeto que nos afeta (o repelido) mas no sujeito que o executa (o que recua). Das suas ideias, crenças e memórias passadas. Dos seus limites, fronteiras e códigos que são pelo nojo reiterados. Por isso, o nojo é contingente e subjetivo. É fruto de um discurso ou de uma historicidade.Acentuando este campo subjetivo, temos a incerteza e a falta de rigor científico (inerentes à dimensão e novidade da pandemia), abrindo espaço a que cada um encontre, para si, a forma mais apaziguadora de se “defender”. Por esta abertura, entram também o preconceito e o estigma, enviesando esta imunidade com vícios e erros percetuais e suscitando repulsa em tudo o que é estranho e não familiar, fora de uma norma cristalina e pura [8].
Um olhar fixo e assertivo. E, novamente, o apito.
O “outro” continuará ininterruptamente a sua interpelação. Por isso, a hiper-imunidade não nos serve. Só com ingenuidade narcísica ou na esfera da angústia da sobrevida se acredita que a resposta passe exclusiva ou maioritariamente pelo seu controlo. Pela sua expulsão.
A hiper-imunidade não nos serve. É ela, ironicamente, que derruba quando uma resposta imunitária se exacerba numa tempestade de moléculas defensivas e que, ao invés de debelar o vírus, é o corpo que fere [9]. É ela que remove o sujeito de um espaço de comunidade de que depende, que o isola promovendo um efeito autoimunitário, destruindo a própria vida de que faz parte [10].
Por isso, hoje, quando a ciência é incerta, exige-se ainda mais uma coerência que procure acompanhar um conhecimento que caminha ao passo do momento; quando o medo impera e a ameaça reside no outro, exige-se ainda mais uma ética incansável por manter o comum, os afetos e a alteridade; quando as barreiras (que já singravam) se tornam mais necessárias, exige-se ainda mais que elas sejam sempre questionadas.É imperativo vivermos, desconfortavelmente, estes paradoxos. Desconstruir hábitos que se enquistam deslocados. E perceber que a vida é sempre uma vivência sensata e ponderada de um risco (nem nulo, nem extremado) e que exige de nós, sempre mais, atenção e cuidado.
[1] Performance apresentada no dia 21 de julho de 2019 no evento ‘Des|ocupação’ promovido pelo Atelier Real em Lisboa.
[2] Nik Brown, Immunitary Life (Londres; Palgrave Macmillan UK, 2019).
[3] Mark Schaler et al, The Behavioral Immune System (and Why It Matters), Current Directions in Psychological Science 20, n.º 2 (2011): 99-103.
[4] Sara Ahmed, “The Performativity of Disgust”. Em The Cultural Politics of Emotion, dir. Sara Ahmed (Edimburgo: Edinburgh University Press/Routledge, 2004), 82-100.
[5] Jacques Derrida, “Autoimmunity: Real and symbolic suicides”, em Philosophy in a time of terror, dir. Giovanna Borradori (Chicago: University of Chicago Press, 2003).
[6] Como exemplos: a autoimunidade, os microbiomas (bactérias que vivem dentro de nós, que toleramos e de que dependemos) e várias tecnologias médicas que implicam a entrada no corpo de “outridades” e vários níveis de alteração do sistema imune (estimulando ou suprimindo) – como a transplantação e a vacinação.
[7] Jean-Luc Nancy, El intruso (Buenos Aires: Amorrortu, 2006).
[8] É frequente, durante as pandemias, uma viragem ideológica para polos conservadores e a acentuação de pensamentos e atitudes de intolerância e preconceito (racismo, xenofobia, misoginia, homofobia, capacitismo, etc.).
[9] Francesca Coperchini et al., “The cytokine storm in COVID-19: An overview of the involvement of the chemokine/chemokine-receptor system”, Cytokine & Growth Factor Reviews 53 (Junho 2020): 25-32.
[10]Terms of the Political: Community, Immunity, Biopolitics, ed. Roberto Esposito (Nova Iorque: Fordham University Press, 2012).
